Arrasto pela água levou plantas e também a camada mais fértil das terras produtivas. Considerando perdas em solo e nutrientes, o prejuízo calculado pela cheia é estimado em R$ 6 bilhões. Fonte: Bruna Oliveira – GZH Campo e Lavoura
A devastação pela enchente na agropecuária afetou o principal meio de produção dos agricultores, que é a terra. Nas áreas de maior declive, a água literalmente desceu morro abaixo, arrastando com ela não só a produção, mas também parte importante do solo. A principal camada que foi perdida, a camada superficial, é a que concentra o maior acúmulo de matéria orgânica, e, portanto, a parte mais fértil desses terrenos.
Os efeitos do arraste são distintos em cada região alagada, mas potencialmente severos em termos de produção agrícola. A depender do tamanho do estrago, podem gerar redução de produtividade e até inviabilizar cultivos nos casos mais extremos.
Estudo elaborado por pesquisadores da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membros da Associação de Conservação de Solo e Água – ACSA estima que o prejuízo, somente em solos e nutrientes, é de R$ 6 bilhões.
Conforme nota técnica do MapBiomas, a enchente atingiu quase 1,6 milhão de hectares no território gaúcho. Desse total, 64% correspondem a área rural, da qual a maior parte (40%) é dedicada à agricultura e outra parcela importante é utilizada para fins agropecuários diversos, identificada como mosaico de uso (25%).
Professora do Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da UFRGS, Amanda Posselt Martins explica que a fertilidade do solo é construída por anos de manejo. E grande parte dos locais afetados são áreas historicamente utilizadas, como a região dos Vales. Nesses terrenos, a perda da camada fértil é como se fosse também a perda da casa desses cultivos:
– A matéria orgânica do solo é a casa de muitos organismos. Assim como as casas das pessoas foram levadas embora, o habitat de uma diversidade de organismos também se foi. Então, é uma reconstrução do zero em vários níveis.
– A composição dos terrenos leva tempo para ser reposta e dificilmente será plenamente recuperada de uma safra para a outra. Enquanto isso, algumas áreas podem ter menor produtividade, até que as terras se restabeleçam por completo.
– Os danos em termos de solo são dentro e fora das propriedades rurais. Segundo Amanda, o problema ocorre tanto onde a camada superficial se perdeu quanto nos locais para onde ela escoou. É o caso dos sedimentos que estão sendo levados para o oceano, com impacto que virá também na fauna dos mares.
– Foi algo extremamente desastroso para os solos. Ou ele levou uma camada para os rios e se perdeu, ou depositou camadas consideráveis sobre outros solos. Isso causa uma perturbação muito grande. Claro que devemos considerar as diferentes regiões, mas foi um efeito muito danoso e que vai custar muita recuperação — antecipa Pedro Selbach, professor da UFRGS e um dos responsáveis pelo estudo que traça os danos financeiros.
Gerente de Sustentabilidade da SIA Brasil, Serviço de Inteligência em Agronegócios, Gustavo Heissler, lembra que cada área tem suas características de relevo e formação, e isso tem impactos diferentes de perda. Além disso, os danos não foram apenas em nutrientes, exigindo ações que vão além da correção de solo.
– As perdas não foram apenas químicas. Tivemos uma alteração nas características físicas dos solos. Além dos nutrientes da camada superficial que foram perdidos, há áreas que estarão mais compactadas — diz Heissler.
A compactação dos solos está diretamente associada à capacidade de infiltração da água.
Os problemas decorrentes dela estão em ambos os eventos extremos que acometem o RS nos últimos anos: na estiagem, quando o solo não armazena a água, e na enchente, quando o solo raso deixa a água correr.
Como recuperar
A recuperação das áreas devastadas passa por estratégias que vão além da simples adubação ou do uso de componentes como o calcário. Em alguns casos, será necessária a adoção de técnicas mais direcionadas ou mesmo de uma mudança dos modelos produtivos.
O primeiro passo, segundo o gerente da SIA, é analisar o solo para entender como estão as condições químicas, físicas e biológicas da terra. Esse diagnóstico ajudará na tomada de decisões sobre como iniciar a recuperação e quais técnicas utilizar.
O sistema plantio direto é uma das práticas que ajuda na recuperação, criando condições favoráveis ao restabelecimento dos microrganismos, à ciclagem de nutrientes que ainda estão no solo e à criação de uma camada de proteção. A própria cobertura de solo é uma técnica fundamental à parte, assim como a rotação de culturas.
Heissler ainda sugere a aplicação de técnicas de agricultura de precisão, como a aplicação em taxa variável, que permite identificar onde há manchas de fertilidade e tratar cada ponto individualmente, uniformizando a terra.
No caso das pastagens, igualmente prejudicadas pela cheia, a recuperação tende a ser mais rápida.
Ainda que as suas perdas tenham efeitos prolongados na oferta de leite e de carne (já que as pastagens são parte da alimentação dos animais), a tendência é de que as áreas para este fim estejam prontas antes das de plantio.
Mudança de modelo
O desastre sobre os solos é visto pelos especialistas como um caminho para se repensar os modelos produtivos. Além da melhor gestão da terra, é necessário integrar sistemas e reflorestar áreas, intensificando a chamada integração lavoura-pecuária.
Para Pedro Selbach, o evento recente é um divisor de águas para a produção no Rio Grande do Sul. Não basta aplicar o plantio direto sem que ele esteja associado a uma série de outras frentes, como a rotação de culturas, por exemplo.
Considerar as bacias hidrográficas e impulsionar o reflorestamento servem, também, para mitigar efeitos das catástrofes climáticas, acrescenta Amanda Posselt Martins.
– As árvores têm papel fundamental nisso. Em anos de seca, para buscar água com suas raízes e fazer uma redistribuição hídrica, e nas enchentes, reestruturar o solo a ser mais resistente ao processo erosivo — diz.
Estiagem x enchente
Apesar de extremos entre si, a falta de água e a abundância dela em períodos alternados do ano têm sido grandes desafios para a atividade agropecuária gaúcha.
O impacto da escassez hídrica, no entanto, é considerado menos severo aos solos do que a enxurrada, segundo os especialistas.
– A estiagem em si não depaupera o solo. Já o impacto da erosão hídrica é muito maior. Porque daí é perda, o solo não está mais ali, ele vai embora. Na estiagem, se volta a chover, a produção se recupera. O que aconteceu agora foi mudança no solo — explica Selbach.
Problemas futuros
Além dos problemas imediatos de falta de terra para produzir, o empobrecimento do solo e a infertilidade das áreas pode se associar, também, a um problema social no campo. Isso porque muitos produtores podem abandonar as suas atividades.
Junto com o êxodo, preocupa também a desistência do plantio de algumas culturas.
Conforme boletim do Conselho Permanente de Agrometeorologia Aplicada do Estado (Copaaergs), as perdas substanciais de solo já são ponto de preocupação para a safra deste inverno. O dano tende a levar a uma redução nos plantios de trigo, cevada, aveia e canola. Também deve haver efeito nos pomares nos próximos ciclos de produção.